31 de jul. de 2025

'Ensaios sobre a total libertação', de Rogers Silva


Ensaios sobre a total libertação é um livro com quatro narrativas. “Drummond no Orkut”, a primeira, é um breve recorte da vida de João, que ao sentar-se num banco de uma praça no intervalo do seu almoço, se depara com um livro. Primeira leitura de sua vida, também será, para ele, um desconcerto e uma descoberta. Por meio das tramas e dos personagens, vai descobrindo-se a si mesmo.

Em “A máquina-führer”, uma máquina, criada por um alemão a mando de Hitler na década de 1930, permite aos dois protagonistas (o Curioso-menor e o Curioso-Maior) irem a qualquer tempo, espaço ou mente humana. O que parece uma aventura despretensiosa possui, na verdade, outro propósito: não deixar que Rogers Silva, autor da história que ora se constrói, ser culpado pela Segunda Guerra Mundial. Os personagens precisam correr contra o tempo, porque senão – se essa tragédia ocorrer (não a Guerra, mas o autor ser o culpado por Ela) – ele se suicidará aos trinta anos.

Em “Ensaio sobre a libertação total”, a partir dos termos “É isso aí” e “Vai lá”, Jéferson cria uma filosofia, retomando clássicos da filosofia antiga e moderna. Porém, a vida transcende e sufoca discursos e filosofias – é o que a crueza da vida vai provar para ele, que precisa resistir tanto aos tempos de ditadura quanto à sua alergia.

Em “antifadorogerssilva@yahoo.com.br” o autor, Rogers Silva, é também o protagonista da história. Alguns anos após a publicação de Paraíso, seu primeiro romance, aos dezoito anos, um fã incomum (um antifã, na verdade) começa a persegui-lo em todos os seus passos. O que parece uma brincadeira, transforma-se numa história de suspense e terror, com todos os clichês possíveis do gênero.

Ensaios sobre a total libertação é uma reflexão não apenas sobre a capacidade da linguagem e da literatura de criar vidas (e da influência da ficção sobre a realidade), mas também uma reflexão sobre a vida real: esta. Valendo-se de temas universais, traduzidos de modo local (na maioria das vezes em espaços bem definidos), esse livro trata de dores, anseios e angústias de todos os seres. É um brinde à literatura-vida.

Ficha técnica

Título: Ensaios sobre a total libertação
Autor: Rogers Silva
Gênero: Contos: Literatura brasileira
Páginas: 130
Formato: 13x18 cm, brochura
Editora Folheando, 2025 (1ª edição)
Contatos: contato@editorafolheando.com.br e rogers.silva.original@gmail.com
Valor (impresso): R$ 48,60

Para adquirir o livro com frete incluso:

Editora Folheando: https://encurtador.com.br/vufqg

Rogers Silva nasceu e mora em Uberlândia-MG. Publicou contos, artigos de opinião e resenhas em sites, revistas, jornais e coletâneas de livros. Em 2012 publicou Manicômio (contos e novelas), sua primeira obra literária, cuja segunda edição sairá em 2025. Também em 2025 será lançado o seu primeiro curta-metragem: Estátuas sobre túmulos. É cofundador e colunista da Revista O Bule (www.revistaobule.com.br). Atualmente se dedica à escrita de roteiros para o cinema.

24 de jul. de 2025

Sobre mangás e animes #2 - Os animes japoneses e o erotismo

Por Gustavo Coelho 

Uma nostalgia pungente acomete aqueles que viveram a infância e a adolescência na década de 1990. Na memória afetiva de uma geração, estão marcadas as aberturas como de Yu Yu Hakusho, Os Cavaleiros do Zodíaco e Shurato, obras que se tornaram rituais vespertinos transmitidos pela extinta TV Manchete. Aquela era uma época de acesso limitado, onde cada episódio era um evento aguardado. Hoje, o cenário é outro: a um clique de distância, um universo de produções japonesas se abre, permitindo-nos acompanhar animes quase simultaneamente à sua exibição original. E, de fato, a qualidade técnica e narrativa de muitas obras contemporâneas — como Fate/Stay Night, Boruto ou o fenômeno One Piece — é inegável e capaz de despertar o mesmo fascínio de outrora. 

Contudo, ao navegar por este vasto oceano de opções, nota-se uma tendência que se propaga com uma força cada vez maior, gerando um crescente estranhamento e, por vezes, repulsa. A percepção deste fenômeno pode surgir de forma inesperada. Ao se deparar com um título como Kiss x Sis, cuja premissa de comédia escolar parece inofensiva, o espectador desavisado é confrontado com cenas de masturbação, insinuações sexuais explícitas entre meios-irmãos e uma constante apologia à erotização. O choque inicial poderia ser relativizado, não fosse por um detalhe crucial: a obra, como tantas outras do gênero, é primariamente direcionada a um público infanto-juvenil. 

Isto nos leva a um questionamento cultural inevitável: o que se passa na indústria de animação japonesa? Seriam nossas culturas tão distintas a ponto de normalizar tal conteúdo para crianças ou jovens? Uma breve pesquisa no Google acaba revelando que, longe de ser um caso isolado, este é um gênero consolidado e extremamente lucrativo no Japão. Títulos como Monster Musume, To Love Ru Darkness, Redo of Healer e Seikon no Qwaser são exemplos de mangás de sucesso adaptados para a TV, provando a alta demanda por esse tipo de entretenimento. É justo reconhecer que muitas dessas obras possuem narrativas criativas e sequências de ação bem executadas. No entanto, a "apelação" — o apelo à sexualidade de forma gratuita — continua a ser o principal chamariz, com conteúdos cada vez mais eróticos e a exploração de temas progressivamente mais complexos e controversos, como se observa em Junjou Romantica. 

Acredita-se, contudo, que um bom anime pode e deve existir com um conteúdo “ecchi” (termo que designa o erotismo sutil) moderado, sem a necessidade de resvalar para o explícito ou para o “pandering”. O público-alvo, majoritariamente infanto-juvenil, encontra-se em uma fase de descobertas que são muito mais sentimentais do que puramente sexuais. Há, inegavelmente, um despertar da libido na adolescência, mas o que mais aflora nesta etapa são as emoções, as idealizações e a busca por conexão. 

Independentemente do continente onde uma obra é produzida, seu público hoje é global. A responsabilidade dos criadores, portanto, transcende as fronteiras de seu mercado local. É necessária uma evolução no conceito criativo desses animes, adaptando os roteiros a uma sensibilidade mundial que não subestime a inteligência de seu público. O que cativava nas tardes da Manchete não era apenas a violência ou o traço, mas o sentimento de empatia humana como fórmula do sucesso: a amizade, o sacrifício, a superação. Talvez, ao resgatar essa essência, a indústria possa encontrar um equilíbrio, provando que a profundidade emocional ainda é o mais poderoso dos apelos.


Gustavo Coelho, natural do Rio de Janeiro (RJ), reside em Uberlândia/MG. Formado em Comunicação Social e especialista em Marketing, assim como todo bom nerd, é um apaixonado pela cultura Geek. Empresário com 45 anos, tem como hobby a contínua busca do anime perfeito. Casado, pai de uma linda filhota, entra neste mundo mágico da Literatura buscando expandir, cada vez mais, sua criatividade e imaginação.

22 de jul. de 2025

Gratiluz, Trump!

  

Por Allyne Fiorentino

Dizem os jovens místicos, leitores de livros de autoajuda e misticismo barato, “guardiões” do segredo que se esconde deles mesmos, que tudo aquilo que você visualiza, você é capaz de materializar na sua vida. Basta visualizar!

E não é raro encontrar muitos que colocam quadros na parede, com uma composição de recortes de revista de verdadeiras mansões, carros importados na porta da casa, piscina à mostra, um recorte de uma família dos antigos comerciais de margarina, sorrindo feliz e despreocupada. Sim, eu sei o que você está pensando se for meramente perspicaz: Mas isso não é imaginar! Exato. Eu sei, mas a explicação deles para isso é que há pessoas que são incapazes de criar uma imagem mental nítida de alguma possibilidade.

Tá aí uma coisa em que eles acertaram no alvo, mas sem imaginar a grandeza dessa conclusão a que eles chegaram. O processo parou no básico, mas se eles avançam um pouquinho se questionariam o porquê de as pessoas não conseguirem ter essa habilidade, que, segundo eles, abriria tantas portas para uma realidade melhor. Eis uma pergunta que deveria ser feita a esses jovens místicos, cheio de gratiluz, e a todos que se propõe a te dar soluções: “Por quê?”. Por que você não consegue imaginar? Por que esse processo dentro da sua cabeça é tão dificultoso pra ser processado?

O bom é que a vida é bastante irônica. Uma ironia quase newtoniana, que às vezes até desacreditamos, mas funciona. Se na escola, educadores sabem há bastante tempo que o grande problema dos alunos é não ter a capacidade de abstração desenvolvida e que isso impede que eles avancem em seus estudos – fato que quase ninguém fala porque falar sobre isso implica perguntar por que eles não conseguem abstrair e isso nos leva a questionar o nosso sistema mundial. “Ah mas tudo é culpa do Capitalismo, isso é conversa de Comunista!”. Bom, se na escola nosso exemplo de genialidade continua sendo os Gregos é porque alguma coisa neles admiramos que não conseguimos reproduzir hoje em dia. E eles não viviam um capitalismo. É só pensar. É só abstrair um pouco.

Eis que eles crescem e encontram a mesma dificuldade, só que agora de forma “mística”. E pra sanar essa dificuldade, leem muitos livros duvidosos que se propõe a “curar” essa falha mental, ou como eles chamam “bloqueios”. Número de livros que quiçá não leram na escola, por preguiça ou por má vontade, sem saber que a leitura guiada era o que traria a eles um pouco da capacidade de abstrair, ou seja, um grande ciclo vicioso meio engraçado meio triste.

E onde essa conversa vai chegar? Ela vai chegar no Trump e no seu tarifaço. Como? Acompanhe-me: TODOS os brasileiros, sem nenhuma exceção, estudaram na escola, nas aulas de História, Geografia, Sociologia enfim... a trajetória de como os EUA chegaram ao poder mundial: por meio de guerras, genocídios, colonização, violência, escravização, exploração de outros países, criação midiática de simbolismos que colonizam a mente e o imaginário das pessoas. Todos sabem disso, mas entram num grande processo de negação. A realidade é dura demais pra ser aceita. É duro imaginar uma vida fora do sistema. É inimaginável, é imaterializável, é invisualizável. É impossível.

Só que nos últimos dias em que o Brasil resolveu “peitar” os EUA, percebemos que a China está imaginando isso há muito tempo, trabalhando quietinha e silenciosamente sobre o impossível pra torná-lo possível. Não digo que os meios para se chegar a esse fim são dos melhores, mas essa conversa é sobre abstração, e, não, sobre política. É sobre imaginar. Ter a ousadia de imaginar.

Por que se você não tem a ousadia de imaginar coisas que vão além, você vai acabar montando um quadro de recortes em que seu maior desejo, o desejo do seu coração enquanto você está vivendo nesse inferno terráqueo é só uma casa, um carro, um iphone, uma piscina e uma família de comercial de margarina... Como dizem os jovens místicos, muito certeiramente, eu só posso mudar a minha realidade se eu primeiro aceitá-la como real. Mas eles não dizem: depois de aceitar, é preciso imaginar.

 Dizem os jovens místicos, leitores de livros de autoajuda e misticismo barato, “guardiões” do segredo que se esconde deles mesmos, que tudo aquilo que você visualiza, você é capaz de materializar na sua vida. Basta visualizar!

E não é raro encontrar muitos que colocam quadros na parede, com uma composição de recortes de revista de verdadeiras mansões, carros importados na porta da casa, piscina à mostra, um recorte de uma família dos antigos comerciais de margarina, sorrindo feliz e despreocupada. Sim, eu sei o que você está pensando se for meramente perspicaz: Mas isso não é imaginar! Exato. Eu sei, mas a explicação deles para isso é que há pessoas que são incapazes de criar uma imagem mental nítida de alguma possibilidade.

Tá aí uma coisa em que eles acertaram no alvo, mas sem imaginar a grandeza dessa conclusão a que eles chegaram. O processo parou no básico, mas se eles avançam um pouquinho se questionariam o porquê de as pessoas não conseguirem ter essa habilidade, que, segundo eles, abriria tantas portas para uma realidade melhor. Eis uma pergunta que deveria ser feita a esses jovens místicos, cheio de gratiluz, e a todos que se propõe a te dar soluções: “Por quê?”. Por que você não consegue imaginar? Por que esse processo dentro da sua cabeça é tão dificultoso pra ser processado?

O bom é que a vida é bastante irônica. Uma ironia quase newtoniana, que às vezes até desacreditamos, mas funciona. Se na escola, educadores sabem há bastante tempo que o grande problema dos alunos é não ter a capacidade de abstração desenvolvida e que isso impede que eles avancem em seus estudos – fato que quase ninguém fala porque falar sobre isso implica perguntar por que eles não conseguem abstrair e isso nos leva a questionar o nosso sistema mundial. “Ah mas tudo é culpa do Capitalismo, isso é conversa de Comunista!”. Bom, se na escola nosso exemplo de genialidade continua sendo os Gregos é porque alguma coisa neles admiramos que não conseguimos reproduzir hoje em dia. E eles não viviam um capitalismo. É só pensar. É só abstrair um pouco.

Eis que eles crescem e encontram a mesma dificuldade, só que agora de forma “mística”. E pra sanar essa dificuldade, leem muitos livros duvidosos que se propõe a “curar” essa falha mental, ou como eles chamam “bloqueios”. Número de livros que quiçá não leram na escola, por preguiça ou por má vontade, sem saber que a leitura guiada era o que traria a eles um pouco da capacidade de abstrair, ou seja, um grande ciclo vicioso meio engraçado meio triste.

E onde essa conversa vai chegar? Ela vai chegar no Trump e no seu tarifaço. Como? Acompanhe-me: TODOS os brasileiros, sem nenhuma exceção, estudaram na escola, nas aulas de História, Geografia, Sociologia enfim... a trajetória de como os EUA chegaram ao poder mundial: por meio de guerras, genocídios, colonização, violência, escravização, exploração de outros países, criação midiática de simbolismos que colonizam a mente e o imaginário das pessoas. Todos sabem disso, mas entram num grande processo de negação. A realidade é dura demais pra ser aceita. É duro imaginar uma vida fora do sistema. É inimaginável, é imaterializável, é invisualizável. É impossível.

Só que nos últimos dias em que o Brasil resolveu “peitar” os EUA, percebemos que a China está imaginando isso há muito tempo, trabalhando quietinha e silenciosamente sobre o impossível pra torná-lo possível. Não digo que os meios para se chegar a esse fim são dos melhores, mas essa conversa é sobre abstração, e, não, sobre política. É sobre imaginar. Ter a ousadia de imaginar.

Por que se você não tem a ousadia de imaginar coisas que vão além, você vai acabar montando um quadro de recortes em que seu maior desejo, o desejo do seu coração enquanto você está vivendo nesse inferno terráqueo é só uma casa, um carro, um iphone, uma piscina e uma família de comercial de margarina... Como dizem os jovens místicos, muito certeiramente, eu só posso mudar a minha realidade se eu primeiro aceitá-la como real. Mas eles não dizem: depois de aceitar, é preciso imaginar.

Originalmente publicada em Crônica do Dia.

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Allyne Fiorentino é natural de Minas Gerais, mas reside em São Paulo, capital. É profissional das Letras e da Educação, mestra em Estudos Literários na linha de Teorias e Crítica da Poesia, mais especificamente em poesia simbolista. Apaixonada por Literatura Feminina, Simbolismo, Filosofia e excentricidades. Low profile do mundo literário, escreve pouco, mas, acredite, incisivamente. Está também em Crônica do Dia. Instagram: @fiorentinoallyne. 

16 de jul. de 2025

‘Os ratos vão para o céu?’, de Vitor Miranda

 

Nestes contos sobre a infância, Vitor toca em pontos que fogem da própria psicanálise. Trabalhado num texto de conceitos poundianos, misturado com a comunicação dinâmica de nossos dias, seu característico humor sarcástico e uma pitada de realismo fantástico, relata uma espécie de distopia neurolinguística. Mexe em lugares muito perigosos da mente humana. Um bebê na primeira palavra deixa de dizer pai ou mãe, para dizer Google. A deturpação da retina do narrador ganha destaque nesse livro, que é o seu mais radical. Nos faz deixar de achar absurdo a possibilidade de engravidar de um sapo depois de engolirmos tanto sapo na vida. Vitor pega pesado em sua literatura. O livro é absurdamente provocador. Escancara como nós somos assassinos. Depois dos poemas de Exátomos (seu livro anterior) nos mostrar que pioramos, Os ratos vão para o céu? Mostra a crueldade das crianças. Quem escreveu esse livro de contos foi a sua criança mais revoltada. Acima de tudo, Miranda escreveu um dos livros mais políticos dessa geração ao nos colocar de frente para a tortura de nossas infâncias que um dia chamamos de futuro da nação. 

Prefácio na ratoeira, por Xico Sá 

Estava terminando a milésima releitura de Ratos e homens, escrito em 1937 pelo phodástico John Steinbeck, quando me chegou o original encadernado do livro-pergunta de Vitor Miranda. Os roedores amam literatura como apreciam queijos de todos os tipos e origens. A literatura retribui esse estranho amor: Os ratos (Dyonélio Machado) e O riso dos ratos (Joca Reiners Terron), sem se falar no barulho dos ratos nos armários de Angústia (Graciliano Ramos). 

Os ratos vão para o céu?, de Vitor Miranda, nos devolve os roedores em um momento atordoado da infância. Um ratinho cobaia da nossa eterna falta de humanidade. Terá salvação? Existe o paraíso dos roedores para aplacar a nossa culpa? Semeio mais interrogações nesse campo minado. 

Este livro está repleto de assombros que reverberam lá do começo da vida. Os assombros que ficam para sempre. E viram ficção, conto, sapo ou fábula. O autor tira o melhor dos proveitos. Os fantasmas agradecem ao fabulário geral aqui descrito. Os fantasmas, como os ratos, preferem literatura à terapia ou psicanálise. 

Os pesadelos crescem e ficam adultos. Eles ainda estão aqui, junto com ratos, medos, interrogações e a crônica da realidade punk. 

“Cachorros ateus se comiam em frente ao velório”. Aqui já pulamos para outro conto fantástico. A vida se bole em um cenário de morte. Tudo pulsa e chama para o jogo de quem sabe lutar com palavras. 

Vida noves fora zero. Pule para dentro, leitor, é sobre ratos, homens pequenos & grandes, com diálogos para comover. 

Uma última advertência: costela no bafo não rende poema. Aproveite. 


Para adquirir o livro, acesse o Selo Marginal:

https://www.instagram.com/selo_neomarginal/

Ou entre em contato diretamente com o autor. 

 

Vitor Miranda é poeta e escritor paulistano com vivências pelo Paraná e Minas Gerais. Atualmente se divide entre São Paulo e Valinhos. Entre poemas e contos e o romance experimental A moça caminha alada sobre as pedras de Paraty, lançou seu sétimo livro, Os ratos vão para o céu? É poeta e letrista da Banda da Portaria, projeto que nasceu para musicar os poemas de seu livro Poemas de amor deixados na portaria. É parceiro em letras e canções de Alice Ruiz, Rubi, Touché, João Sobral, Luz Marina, Zeca Alencar, entre outros. Criou em 2019 o videocast de poesia Prosa com Poeta, no qual entrevistou diversos artistas. É criador e líder do Movimento Neomarginal, grupo artístico que tenta vencer as amarras do mercado artístico misturando artistas de diferentes níveis (sociais) de público nos mesmos eventos. Está no Instagram.

14 de jul. de 2025

Duplicidade

Por Milton Rezende 
 
Quando nasci
nascia comigo
o oposto de mim.
Assim tenho dois nomes
que simbolicamente constituem
dois inimigos entre si.
 
Para caracterizar dois pólos
não é preciso enumerar os opostos
e nem as subdivisões ocorridas
através de concessões bilaterais
para se chegar a um entendimento.
 
O certo é que esse antagonismo
cristalizou-se no relacionamento,
aniquilando todas as tentativas
de integração entre as partes.
 
O diabo do outro sempre me negou
contradisse-me em público
desmentiu minhas verdades
impediu-me as atitudes
e por fim desmanchou meu casamento.
 
Aí então fiquei louco
e fui recolhido num hospício
onde me perdi eu mesmo num labirinto
de mentiras e desvairismo,
até que me matei.
 
E não é que o outro foi ao enterro,
carregou meu caixão e se riu de mim?
Mas depois ele também morreu
e ainda hoje estamos em conflito aberto.
 
Coisa que, se não traz as vantagens
do perdão pela unidade aparente,
pelo menos impede nosso julgamento
e nos livra do fogo interno/eterno
concedido aos que se pretendem coerentes.
 
Do livro O Acaso das Manhãs

 
Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, morou em Campinas (SP), Ervália (MG) e retornou a Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quinze livros publicados. Tem um site e um blog. 

Fortuna crítica: “Tempo de Poesia: Intertextualidade, heteronímia e inventário poético em Milton Rezende”, de Maria José Rezende Campos (Penalux, 2015).

12 de jul. de 2025

A precariedade do afeto

Por Whisner Fraga 

Em A cachorra (Intrínseca, 2020), Pilar Quintana entrega ao leitor um romance de linguagem seca, direta, quase rude, mas que reverbera como o mar que contorna a vila onde a trama se passa: ora tranquilo, ora descontrolado. Nesta narrativa breve, mas intensa, conhecemos Damares, uma mulher que vive em um balneário costeiro da Colômbia, ao lado do companheiro Rogelio e de cães marcados pela violência com que são tratados naquele lar.

 


Ao adotar uma cadela recém-nascida, Damares parece buscar nela o consolo da maternidade negada. No entanto, a relação entre ambas logo se tinge de ambiguidade – a docilidade inicial da cachorra cede lugar a momentos de rebeldia, o que torna insuportável para Damares a experiência de se ver novamente rejeitada pelo afeto que tenta cultivar.
 

Quintana constrói, com impressionante economia de palavras, com um estilo seco e direto, o retrato de uma existência oprimida pela solidão, pela falta de compreensão e pela dureza da sobrevivência. A casa em que vivem, quase em ruínas, simboliza a precariedade de tudo ao redor, enquanto o clima chuvoso, os pernilongos, a lama, reforçam a sensação de degradação física e emocional. Ao mesmo tempo, há um esforço constante para manter tudo limpo e em ordem, como se os donos do imóvel pudessem voltar a qualquer momento. Essa sensação de perigo, de algo que está sempre prestes a acontecer, rondando, essa possibilidade, parece mais importante do que tudo, mais até do que o próprio relacionamento entre Damares e Rogelio.

 

A prosa é crua, sem adornos. Há diálogos curtos, quase sempre ásperos, e uma sensação de violência suspensa paira sobre cada página, como se qualquer gesto pudesse desencadear a ruína final. Damares projeta na cachorra seus desejos mais secretos de afeto e pertencimento, mas o animal, em sua essência livre, parece rejeitar a prisão que a própria mulher escolheu para si. É mais uma contradição.

 

A cachorra extrai carinho das mãos grandes e calejadas de Damares. Nestes momentos de aparente compreensão, as duas tecem um universo delas, de cumplicidade, de empatia, mas também de medo. Todos sabem que o extinto de sobrevivência é muito mais forte do que a compaixão, do que a amizade.

 

A cachorra, em sua simplicidade enganosa, deixa marcas profundas no leitor, como sempre acontece após a leitura de um bom livro. Pilar Quintana apresenta personagens cuja humanidade transparece justamente em seus aspectos mais brutais, mostrando que, sob a crosta da violência e do egoísmo, pulsa sempre a carência, a necessidade profunda que o ser humano tem de ser amado e compreendido. Um livro marcante, de uma escritora que merece maior atenção do público brasileiro.

Whisner Fraga é mineiro de Ituiutaba. Autor dos livros usufruto de demônios (Ofícios Terrestres, contos, 2022, finalista do Prêmio Jabuti), usufruto de ruínas (Ofícios Terrestres, contos, 2023), as fomes inaugurais (Sinete, contos, 2024), entre outros. Teve contos traduzidos para o inglês, árabe e alemão. É responsável pelo canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que fala sobre obras da literatura brasileira.

10 de jul. de 2025

Sobre mangás e animes #1 – ‘Death Note’

Por Gustavo Coelho

Como toda obra de mangá Shonen, há um protagonista que se destaca por uma capacidade acima da média: inteligência ou habilidades altíssimas ou poderes além dos limites humanos. Publicado originalmente entre 2003 e 2006, na revista Weekly Shõnen Jump, com roteiro de Tsugumi Ohba e arte de Takeshi Obata, Death Note é um mangá que reúne tudo isso em um único indivíduo: Light Yagami. Um verdadeiro anti-herói, encontra um objeto que lhe dará a possibilidade de fuga de seu cotidiano tedioso, tornando-o um dos seres mais emblemáticos e “overpower” da literatura Shonen. A série se tornou um marco da ficção contemporânea por unir narrativa inteligente, estética sombria e uma tensão psicológica raramente vista em mangás do mesmo gênero.

 

Sinopse (sem spoilers) 

Light Yagami é um estudante do ensino médio que encontra um caderno negro no meio do pátio de sua escola, deixado por um Shinigami (deus da morte). Dentro dele, Light se depara com suas regras de utilização. Ao ler a regra primordial ("Aquele cujo nome for escrito neste caderno morrerá"), ele o abandona por um curto período, voltando atrás, logo em seguida, levando-o consigo. 

Posteriormente, em sua residência, Light resolve testá-lo escrevendo o nome de um sequestrador qualquer que estava sendo noticiado na TV, confirmando a veracidade do poder do caderno. Assim, após este teste inicial, Light continua a usar o Death Note para eliminar criminosos e construir um "mundo melhor", matando aqueles que ele considera malfeitores. Em seu dia a dia, à noite ele usa o caderno, enquanto estuda durante o dia, como quaquer outra pessoa da sua idade. Percebendo a ligação entre as mortes, a polícia e a mídia acreditam que exista um assassino em série, o apelidando de"Kira". 

 

“Eu serei Deus de um Novo Mundo.” – Light Yagami

  

Os três personagens principais 

Light Yagami (Kira) – Protagonista da história, Light foi criado no Japão ao lado de sua família, composta por seu pai, Soichiro Yagami (integrante da Força-Tarefa Japonesa responsável por investigar e capturar Kira), sua mãe Sachiko Yagami e sua irmã caçula, Sayu Yagami. 

“L” – O principal Antagonista da história, “L” é um renomado detetive internacional que decide aceitar o caso envolvendo o mistério dos assassinatos cometidos por Kira. Ao longo da investigação, ele faz amizade e, logo em seguida, passa a desconfiar de Light, concentrando seus esforços em reunir provas para demonstrar que ele é, de fato, Kira. 

Ryuk – É o Shinigami que, depois de ficar entediado com o Reino em quee vive, rouba um Segundo Death Note e o atira no mundo humano para alguém o encontrar. Não tem sentimentos pelos portadores e por nenhum humano. Apenas se importa com o caos que é gerado pelas consequências do uso do caderno. 


Considerações sobre a obra 

Death Note não é uma obra comum. Envolve tramas muito mais sofisticadas e à frente do seu tempo. É uma verdadeira batalha intelectual que questiona o senso de justiça e o limite do certo e do errado. O embate mental entre o protagonista e seu antagonista é visto como um jogo de xadrez, onde todo movimento é meticulosamente calculado. 

Indo mais além, a obra traça aspectos comuns da natureza do ser humano. Levanta questões como sentido de justiça e sua aplicação. O protagonista assume um papel de juiz, juri e executor, ao mesmo tempo, criando um conceito específico de mundo purificado. Mas a medida que Light assume o papel de “deus”, seu ego se torna a peça central. Já não luta mais por justiça, mas por domínio e sobrevivência de sua imagem. A obsessão com o controle do mundo é uma fuga do seu vazio existencial. 

Ryuk, o shinigami, por outro lado, representa o niilismo puro.  Ele observa tudo como se fosse um jogo, sem emoção, sem julgamento. Sua indiferença frente à morte e ao sofrimento expõe o contraste com a arrogância humana em buscar propósito através do poder. 

No final, pode-se dizer que é uma história sobre controle, ego, medo e justiça. Mas, acima de tudo, é um retrato sombrio do que acontece quando nos convencemos de que somos os únicos aptos a decidir o destino dos outros.


Gustavo Coelho, natural do Rio de Janeiro (RJ), reside em Uberlândia/MG. Formado em Comunicação Social e especialista em Marketing, assim como todo bom nerd, é um apaixonado pela cultura Geek. Empresário com 45 anos, tem como hobby a contínua busca do anime perfeito. Casado, pai de uma linda filhota, entra no mundo mágico da Literatura buscando expandir, cada vez mais, sua criatividade e imaginação.

8 de jul. de 2025

‘usufruto de demônios’, de Whisner Fraga – um livro síntese

Por Krishnamurti Góes dos Anjos 

Fragmentos de vida compõem o conto. Daí resulta, quando em mãos hábeis, a emergência de um caráter lírico proveniente da força do fragmento. Júlio Cortázar (1914-1984) endossa tal afirmativa e explica bem o recorte que os contistas podem e devem realizar: ao escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que seja significativo e não valha por si mesmo, podem causar mais facilmente nos leitores uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido no conto. 

Quanto à forma que o gênero vem assumindo na atualidade, constatamos verdadeira busca pela síntese, reflexo de uma era marcada pelo esfacelamento, fragmentação, velocidade e intensidade. Surgem daí vertentes narrativas que enveredam pelo que difusamente denominamos de mini, micro ou nanoconto, formas diminutas de ficções. 

Um dos grandes estudiosos da narrativa curta hoje no Brasil, o professor Rauer Ribeiro Rodrigues, molda uma teoria interessante partindo de uma premissa exata: um texto, qualquer texto, até por etimologia, é uma trama, uma rede, uma teia, uma tela, um entrelaçamento de informações linguísticas. O nó dramático é constituído nos encontros de dois fios da tecitura que o texto tece. E o gênero é, sem dúvida, excelente instrumento, devido a sua ampla capacidade de transformação. 

O mesmo estudioso acrescenta ainda que alguns escritores andam empenhados em fazer com que o encontro dos fios do tecido textual se configure afinal num bordado sem falhas e sem nódulos, sem “tropicões” textuais. Busca-se a frase que contenha diversos nós dramáticos, com os termos se modificando ou acrescentando significados entre si. A narrativa se realiza sob o primado da ação, do enredo enredado, das ações articuladas na tecitura com os nós e os “vazios”, constituindo signos, gerando significados, texto e discurso. O nó dramático é, pois, o movimento narrativo, o criador do efeito de narrativa, a figura textual que engendra a narratividade.



A leitura do livro de contos do escritor e crítico literário Whisner Fraga, usufruto de demônios (Ofícios Terrestres, contos, 2022, finalista do Prêmio Jabuti), é obra especial nesse sentido. Ela nos revela um escritor maduro, com pleno domínio da palavra e das técnicas de ficção. O que a princípio poderia aparentar uma reunião despretensiosa e aleatória de fragmentos, pequenas narrativas, estilhaços de prosas poéticas, paródias de minicontos, de vazios, acaba por contribuir – intencionalmente – para que tenhamos a exata medida da barafunda existencial em que estamos metidos. O autor modela cuidadosamente seus pensamentos em ficções de um realismo sem disfarces, um realismo cegante na glorificação do real em sua maior crueza, para acomodar seus incidentes. Tendo concebido um certo efeito único ou singular a ser trabalhado, ele então inventa incidentes, combina eventos de forma que eles o auxiliem a estabelecer o efeito preconcebido. 

O propósito de refletir sobre a pandemia que ceifou milhares de vida no Brasil e no mundo, que pode parecer ao leitor desavisado o objetivo central do autor, cai por terra, entretanto. Melhor, frutifica outras importantes sementes de percepção. Essenciais, fulcrais. Voltemos ao título da obra: usufruto de demônios. Afinal, o que vem a ser “usufruto”? A terminologia jurídica nos diz que é o direito conferido a alguém, durante certo tempo, de gozar ou fruir de um bem cuja propriedade pertence a outrem. Aquilo que se pode desfrutar para que, por certo tempo, de forma inalienável e impenhorável, possa usufruir da coisa alheia como se fosse sua, contanto que não lhe altere a substância ou o destino, se obrigando a zelar pela sua integridade e conservação. E demônios, como sabemos todos, não respeitam exigências de não alterar substâncias ou destinos. Jamais zelam por “integridades e conservações”. 

Whisner Fraga alimentou e bem nutriu a ambição de escrever além da temática/questão pandêmica, como bem entendeu Gabriel Morais Medeiros, que assina o interessantíssimo posfácio à obra. Em usufruto de demônios, assistimos à nossa própria desordem moral e física ante a aparecimento e transmissão do vírus da covid, é verdade. Mas não é só isso. Há como que uma sondagem para além desse fato isolado a nos mostrar que nossa infeliz problemática enquanto povo, enquanto estado e nação tem sido um desastre sem freios. Onde fica o brasileiro cordial após a leitura de um conto como “aparar as árvores, na pandemia”? 

“as copas avançam pelo terreno, as folhas apodrecidas revestem o ladrilho e ele volta com o facão, para resolver o problema” e substituir por “determinado: o tronco pertence à casa ao lado, o muro deixava isso claro: o ipê, portanto, não é dele e o ideal seria pedir autorização para a poda, mas um ano aguentando essa sujeira não fez dele um homem melhor: da escada, enquanto derruba o terceiro galho e enxuga a testa com as costas da mão, ouve os passos agitados do vizinho, em seguida uns gritos afrontando os parâmetros da boa convivência, e, pior: vinha sem máscara: devia estar preparado, ainda que normalmente não fossem violentos.” (p.16). 

Diante das escolhas do autor quedamo-nos perplexos. A temática abordada de sutil angulação quanto ao enfoque, revela nossa impiedade (vide o texto “a velha no canto”), o nosso desamor (“você não faz mais parte dessa família”), a indiferença ou a maldade deliberada (“pureza”), ao lado de textos de um lirismo comovente, como acontece em “profilaxia de muros” e “duelo”.  O autor mira a sua pena precisamente para o que é o Brasil. Quem somos nós afinal? Onde estão e moram os nossos demônios? 

“o medo atocaia meus passos, que esmiuçam a fuga, os postes na rua balbuciam a claridade impetuosa: inútil clareira a realçar o breu, eles não aceitam a existência do medo, mas trancam as portas, os dedos sapateiam ferozmente sobre a tela do celular, propagando mentiras, o temor entra, liga a tv, senta no sofá e bebe uma cerveja, eles compreendem o preço dos produtos, e o medo é mercadoria também, não me enganem não me convençam que a desordem prevalecerá, não me arranquem o medo e o substituam por uma arma, em nome do direito dos costumes, da fé, imploram a mediação da bala: tenho medo, e ele pode gestar um impulso em direção ao ataque.” (“ele chegará”, p. 48). 

Nada escapa ao crivo do autor. A desorganização social, a decadência e a desilusão que marcam as relações amorosas, o devir histórico e o funcionamento do corpo social, falido, as relações de força e violência destrutiva que organizam o tecido social brasileiro do presente: 

“ele imagina: graças a deus, graças a deus, me safei dessa, estou em casa com a esposa, com a filha, graças a deus estamos abraçados esperando a novela começar, mas o revólver ainda está apontando para a testa dele e não descobre o que fazer com o moleque ordenando o dinheiro, o celular, o relógio, ou hoje é o seu dia de morrer, rápido ou aperto o gatilho.” (“nunca se sabe como um assalto pode terminar”, p. 63). 

Os textos urram as agruras de nossa sociedade na qual imperam as muitas formas de exclusão e desencontro. As criaturas de Whisner Fraga são seres humanos comuns, cujos dramas não interessam especialmente a ninguém, mas que, tomados na perspectiva panorâmica e vertiginosa em que se apresentam, dizem algo acerca da precarização de nossa experiência contemporânea. Nossos demônios estão por toda parte a eleger o sofrimento e a miséria física e moral como um fatalismo cego, um “não há por onde ser diferente”. Perfeita tradução de uma civilização que lança mão da barbárie para a própria manutenção. 

Essas vias de análise do autor nos fazem lembrar muito o célebre texto de Bertold Brecht (1898-1956): “Há muitas maneiras de matar uma pessoa. Cravando um punhal, tirando o pão, não tratando sua doença, condenando à miséria, fazendo trabalhar até arrebentar, impelindo ao suicídio, enviando para a guerra, etc. Só a primeira é proibida pelo Estado.” As demais, e há muitas e muitas outras formas, derivam de outros fatores, nomeadamente do modelo capitalista predador, destruidor e genocida que adotamos: 

“o policial ergue os braços para cumprimentar os colegas na viatura, os mendigos revoam, alarmados (homens em situação de rua, corrigirão os militantes de coletes laranjas, que aportam depois de removido o corpo): eles retornam, passos miúdos, ariscos, abaixam os pesares até o contorno do amigo sob a manta térmica, a assepsia metálica blindando a indigência, ele não brindará mais a afeição que nunca lhe negou um gole nem o amor picando a veia num enlace fraternal, enquanto ninguém tem coragem de perguntar quem velará o companheiro quando o levarem.” (“cuidado com o embrulho na calçada”, p. 24). 

Para além da polarização infantil de direitas e esquerdas que assistimos hoje no país (a essa altura ninguém mais acerta definir o que é isso ou aquilo), nossos demônios continuam instilando o ódio de classes, o ódio de gêneros, o ódio de raças e tudo que nos divida cada vez mais. E seguimos endeusando a Economia, o Mercado, a produção, o lucro. Aqueles que produzem as riquezas são descartáveis, já que há mão de obra em excesso, sem preparo e disponível. Essa a lógica (i)lógica do capitalismo. Leia-se especialmente o conto “você não precisa explicar nada”. Nosso passivo social é imenso, com ou sem pandemia. Para onde vai um país no qual 1% da população concentra 50% da riqueza nacional? Como deter a fúria demoníaca dos exploradores de toda sorte? Como abater a ditadura da mídia, a ditadura do latifúndio, o pensamento único fascista? Grassa no país a impunidade! Essa mesma que despreza Constituição, leis, tudo. Nossa verdadeira pandemia não surgiu com a Covid, mas mora diabolicamente entranhada em nós há séculos. 

O que salta à vista nesse mosaico de desatinos apresentado pelo autor de usufruto de demônios é o homem jogado em um verdadeiro tormento em vida. É o inalterável cotidiano de um país, onde as roubalheiras, os desacertos e retrocessos desse nosso eterno desnorteio fazem parecer que o Brasil é um imenso inferno a céu aberto. O inesgotável repertório de derrotas causou aos nossos dias a mais completa falência dos valores humanos. Com ou sem pandemia, o quadro não se altera. 

De muitas formas, sutis ou escancaradas, o autor mostra como atua e como se reproduz em nosso caráter a intolerância, o racismo, a desonestidade e o terror físico e psicológico – características que oprimem nosso semelhante, criando, pela desigualdade, diferenças arbitrárias e justificando-as como naturais: 

“conferiram as equações, os dados, os algoritmos e constataram o fim: sei que você suspeita disso, após tanta carnificina que presenciamos do sofá, entre um comercial e outro, e é arriscado confiar em vírgulas, sinais, operadores, ainda mais diante deste vírus ardiloso: um erro seria trágico, viria a temível sétima onda, helena: vamos sair, ainda com máscara, claro: eles garantem, a vacina é eficaz: sei, você vai argumentar que nem quando precisou desesperadamente de tratamentos, de médicos, de hospitais, deixou o apartamento, mas a situação é outra, agora estamos autorizados, há um decreto, há uma urgência, eu sei, você não pode, mas tinha de lhe perguntar, sempre foi assim, decidimos tudo juntos: me desculpe, mas eu vou aproveitar esse dia que sangra o medo: torça por mim.” (calafrio binário, p.41).

 

A leitura de um livro incisivo assim pode transmitir ao leitor a impressão de estar diante de um escritor que do fundo de seu desencanto e, ante o rigor que usa na caracterização das monstruosidades humanas, abriga um cético completamente descrente da redenção. Um sujeito que se desiludiu profundamente com a humanidade. Não creio. Por duas razões: a primeira de lógica elementar. Se assim o fosse, não teria escrito doze (12) livros até aqui. E a segunda, que vem se tornando espécie de marca registrada sua: o leitor mais atento há de notar que em vários de seus contos aparece uma certa personagem, Helena. Ela quase não fala, pouco dialoga, mas está sempre ali, ouvindo atenta o narrador. Cumpre lembrar que o autor tem uma filha que se chama Helena. E fica-nos, ante tal revelação, uma certeza. Quanta e imensa esperança mora num autor que urde suas ficções e escapa de volta para a realidade da própria vida a estimular, persuadir e atiçar a própria filha. Incansável, ele alerta e orienta sua descendência direta quanto aos abismos que cercam a existência, mostra como contorná-los. Não há, verdadeiramente, maior sinal de esperança na posteridade do que este, dentro e fora da Literatura.

 

 

Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor, entre outros, de O Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Embriagado Intelecto e outros contos, À flor da pele (contos) e Destinos que se cruzam (romance). Possui textos publicados em revistas no Brasil, Portugal, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do rebanho (Editora Chiado, romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE/RJ) em 2014. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea, colaborando em diversos jornais, revistas e sites literários.

7 de jul. de 2025

Dias de semanas de delírio


Por Milton Rezende 
 
Segunda-feira eu subo as escadas correndo
de saudade e levo um pacotinho de biscoito
água e sal para ela, e as chaves da sala de
informática, então acho graça do meu desatino
e da desnecessidade absoluta de tudo aquilo.
 
terça-feira eu desço as escadas correndo
de atrasado e carrego um livro de história
antiga para dar de presente e um envelope
pardo de papel para esconder a surpresa do
sobrenome, e ela não faz nenhum comentário.
 
quarta-feira eu subo as escadas correndo
de ansiedade e levo uma novidade imobiliária
que ainda não saiu do papel para ela realizar
por antecipação o sonho da casa própria, mas
é tudo tão pouco e tão vago como um beijo raro.
 
quinta-feira eu desço as escadas correndo
com um crachá e um convite para almoçar
e então entramos no ônibus lado a lado e a
vida parece ser tão mais fácil que quase fica
suspensa no meio dos olhares e dos talheres.
 
sexta-feira eu subo as escadas correndo
ainda sem ter um pretexto forte o suficiente
para tentar prolongar o convívio nos finais
de semana, nas férias, viagens, feriados e nas
licenças médicas que interrompem a sequência.
 
sábado a realidade do sonho sem significado
domingo a certeza de estar no caminho errado
férias e ela viajando com filhos e compromissos
feriado e eu deitado contemplando retratos
ausências no trabalho e eu só pensando em fugir
 
sem olhar as cicatrizes nas pálpebras dos olhos lacrimejantes.
 

Do livro O Jardim Simultâneo


Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, morou em Campinas (SP), Ervália (MG) e retornou a Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quinze livros publicados. Tem um site e um blog. 

Fortuna crítica: “Tempo de Poesia: Intertextualidade, heteronímia e inventário poético em Milton Rezende”, de Maria José Rezende Campos (Penalux, 2015).

4 de jul. de 2025

Editorial: Somos ilhas, mas devemos ser arquipélago criativo

 No mundo atual, somos ilhas, mas ilhas que não se comunicam efetivamente com outras ilhas. Há um mar, extenso e profundo, entre uma ilha e outra. Em tempos de vida virtual e redes sociais, apenas fingimos que nos comunicamos, quando na verdade estamos gritando sozinhos, com gritos que não alcançam outros ouvidos e não formam outros gritos. 

No meio literário, a percepção de isolamento é real, seja por opção do próprio escritor, por ingenuidade (o mito do escritor que apenas escreve e recebe os louros por sua genialidade), ou por ele não fazer (ou não querer fazer) parte de certas panelinhas vigentes (hoje, em especial, da cultura woke, apropriação capitalista de pautas progressistas). Esse isolamento, essa realidade criam a necessidade de uma comunidade (de um cooperativismo, de um coletivismo) para que o artista, mais do que ilha, seja um arquipélago em potência. 

A Revista O Bule possui um histórico de coletivismo, mais como plataforma de divulgação de centenas de pessoas, escritores e obras, do que como plataforma literária gerida por uma coletividade. Em geral, ela foi sustentada por pouquíssimas pessoas que doaram seu tempo (às vezes seus recursos) a fim de manter um sonho. Mas ninguém vive de sonho. O próprio sonho não vive de si. Ele se desvanece quando acordamos. No mundo das artes, para que um sonho sobreviva, são necessários resultados concretos ou, no mínimo, alguma recompensa abstrata, como visibilidade, admiração, networking, redes de apoio. No entanto, nem sempre isso ocorreu para quem esteve à frente deste projeto, que mais exigia do que oferecia. Ofereceu muito, tendo em vista toda a sua história, não negamos, mas exigiu mais, muito mais. Eis os motivos de a Revista O Bule passar por muitas pausas durante os últimos quinze anos, desde que foi ao ar, em janeiro de 2010. 

Como viver de literatura no Brasil? Como viver de cinema no Brasil? Como viver de arte no Brasil? São perguntas para as quais muitas respostas foram dadas, desde sempre, ou para as quais ninguém tem a resposta. Um projeto coletivo deveria ser uma resposta possível, desde que a coletividade de fato se engaje, cada individualidade com suas condições e restrições, na gestão e na divulgação deste projeto. É preciso de engajamento, força de vontade, desprendimento e um pezinho no chão, o que nem todos os artistas possuem, infelizmente. Aliás, não queremos viver de literatura ou cinema no Brasil, mas queremos que nossa literatura, nosso cinema cheguem até o outro lado da ponte, que liga uma ilha à outra. Queremos, como qualquer outro, leitores e espectadores.

Na prática, o cooperativismo é um conceito mais justo do que o coletivismo, conceito hoje em dia démodé, em tempos de exacerbação do eu - em tempos em que cada ser, no meio de oito bilhões de seres, se acha mais importante do que outro ser e, por isso, acha que deve receber mais louros, às vezes até mesmo sem os esforços devidos. O cooperativismo subentende, mais do que o compartilhamento de recursos, conhecimentos, frutos e oportunidades, o compartilhamento dos custos e das responsabilidades. Quem hoje, em tempos de falsas e verdadeiras ocupações, de falsas e verdadeiras demandas, de informação caótica e frenética, está disposto a cooperar com o outro, com a produção artística do outro, com a distribuição da arte do outro?


 

No entanto, se acreditássemos que a solidariedade entre artistas está sempre revestida de interesse, não proporíamos - como estamos fazendo aqui - a criação de um espaço de cooperação, inspiração e ajuda mútuas: um espaço que acredita na força da união, do coletivo, do reconhecimento da arte como meio para se atingir, positivamente, o outro em sua individualidade e multiplicidade. Do individual para o coletivo; do coletivo para o individual - eis o trajeto que propomos: artista > artistas > leitor/artista. 

Se você compreende o propósito de fortalecer a arte através da união e da cooperação, se escreve (sobre) literatura e/ou cinema, se está disposto a passar por um processo de seleção para fazer parte deste movimento, entre em contato conosco! Estamos à procura de colunistas fixos e colaboradores. Por e-mail (coisasprobule@gmail.com), vamos tirar todas as suas dúvidas sobre o projeto. Antes, no entanto, é bom frisar algumas coisas… 

A linha editorial da Revista O Bule continua a mesma: a literatura e o cinema, abordados juntos ou separados, com foco - não exclusivo - na produção artística brasileira, tanto a atual quanto a canônica. Priorizamos a diversidade de temas e gêneros (contos, folhetins, artigos de opinião, entrevistas, poemas, resenhas, releases, crônicas, micronarrativas, declamações, vídeos-resenhas, etc.), mas não publicaremos obra artística a partir da análise - sempre complexa - da cor, raça, identidade de gênero, opção política do autor ou autora - ou de  quaisquer características adjacentes à obra. Não publicaremos obra artística por sua potência moralista ou ideológica. Não nos ateremos à arte que, por visar determinados temas da moda, se coloca como a única arte possível em um mundo tão caótico e complexo. Nosso compromisso é com a arte que oferece mais perguntas do que respostas, com a literatura e o cinema que incomodam, fazem refletir, impactam, socam o estômago de quem entra em contato com eles. 

As lições de moral, deixemos para os convertidos e religiosos, que possuem respostas prontas para todos os mistérios do universo. Eles já ocupam espaços demais, hoje em dia. A Revista O Bule não é púlpito. É apenas uma revista de literatura e cinema.