Por
Krishnamurti Góes dos Anjos
Fragmentos de vida compõem o conto. Daí resulta, quando em
mãos hábeis, a emergência de um caráter lírico proveniente da força do fragmento.
Júlio Cortázar (1914-1984) endossa tal afirmativa e explica bem o recorte que
os contistas podem e devem realizar: ao escolher e limitar uma imagem ou um
acontecimento que seja significativo e não valha por si mesmo, podem causar
mais facilmente nos leitores uma espécie de abertura, de fermento que projete a
inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do
argumento visual ou literário contido no conto.
Quanto à forma que o gênero vem assumindo na atualidade, constatamos
verdadeira busca pela síntese, reflexo de uma era marcada pelo esfacelamento,
fragmentação, velocidade e intensidade. Surgem daí vertentes narrativas que
enveredam pelo que difusamente denominamos de mini, micro ou nanoconto, formas
diminutas de ficções.
Um dos grandes estudiosos da narrativa curta hoje no Brasil,
o professor Rauer Ribeiro Rodrigues, molda uma teoria interessante partindo de
uma premissa exata: um texto, qualquer texto, até por etimologia, é uma trama,
uma rede, uma teia, uma tela, um entrelaçamento de informações linguísticas. O
nó dramático é constituído nos encontros de dois fios da tecitura que o texto
tece. E o gênero é, sem dúvida, excelente instrumento, devido a sua ampla
capacidade de transformação.
O mesmo estudioso acrescenta ainda que alguns escritores
andam empenhados em fazer com que o encontro dos fios do tecido textual se
configure afinal num bordado sem falhas e sem nódulos, sem “tropicões”
textuais. Busca-se a frase que contenha diversos nós dramáticos, com os termos
se modificando ou acrescentando significados entre si. A narrativa se realiza
sob o primado da ação, do enredo enredado, das ações articuladas na tecitura
com os nós e os “vazios”, constituindo signos, gerando significados, texto e
discurso. O nó dramático é, pois, o movimento narrativo, o criador do efeito de
narrativa, a figura textual que engendra a narratividade.

A leitura do livro de contos do escritor e crítico literário
Whisner Fraga, usufruto de demônios (Ofícios Terrestres, contos, 2022,
finalista do Prêmio Jabuti), é obra especial nesse sentido. Ela nos
revela um escritor maduro, com pleno domínio da palavra e das técnicas de
ficção. O que a princípio poderia aparentar uma reunião despretensiosa e
aleatória de fragmentos, pequenas narrativas, estilhaços de prosas poéticas,
paródias de minicontos, de vazios, acaba por contribuir – intencionalmente –
para que tenhamos a exata medida da barafunda existencial em que estamos
metidos. O autor modela cuidadosamente seus pensamentos em ficções de um
realismo sem disfarces, um realismo cegante na glorificação do real em sua
maior crueza, para acomodar seus incidentes. Tendo concebido um certo efeito
único ou singular a ser trabalhado, ele então inventa incidentes, combina
eventos de forma que eles o auxiliem a estabelecer o efeito preconcebido.
O propósito de refletir sobre a pandemia que ceifou milhares
de vida no Brasil e no mundo, que pode parecer ao leitor desavisado o objetivo
central do autor, cai por terra, entretanto. Melhor, frutifica outras importantes
sementes de percepção. Essenciais, fulcrais. Voltemos ao título da obra: usufruto
de demônios. Afinal, o que vem a ser “usufruto”? A terminologia jurídica
nos diz que é o direito conferido a alguém, durante certo tempo, de gozar ou
fruir de um bem cuja propriedade pertence a outrem. Aquilo que se pode
desfrutar para que, por certo tempo, de forma inalienável e impenhorável, possa
usufruir da coisa alheia como se fosse sua, contanto que não lhe altere a
substância ou o destino, se obrigando a zelar pela sua integridade e
conservação. E demônios, como sabemos todos, não respeitam exigências de não
alterar substâncias ou destinos. Jamais zelam por “integridades e
conservações”.
Whisner Fraga alimentou e bem nutriu a ambição de escrever além
da temática/questão pandêmica, como bem entendeu Gabriel Morais Medeiros, que
assina o interessantíssimo posfácio à obra. Em usufruto de demônios,
assistimos à nossa própria desordem moral e física ante a aparecimento e
transmissão do vírus da covid, é verdade. Mas não é só isso. Há como que uma
sondagem para além desse fato isolado a nos mostrar que nossa infeliz
problemática enquanto povo, enquanto estado e nação tem sido um desastre sem
freios. Onde fica o brasileiro cordial após a leitura de um conto como “aparar
as árvores, na pandemia”?
“as copas avançam pelo terreno, as folhas apodrecidas
revestem o ladrilho e ele volta com o facão, para resolver o problema” e
substituir por “determinado: o tronco pertence à casa ao lado, o muro deixava
isso claro: o ipê, portanto, não é dele e o ideal seria pedir autorização para
a poda, mas um ano aguentando essa sujeira não fez dele um homem melhor: da
escada, enquanto derruba o terceiro galho e enxuga a testa com as costas da
mão, ouve os passos agitados do vizinho, em seguida uns gritos afrontando os
parâmetros da boa convivência, e, pior: vinha sem máscara: devia estar preparado,
ainda que normalmente não fossem violentos.” (p.16).
Diante das escolhas do autor quedamo-nos perplexos. A
temática abordada de sutil angulação quanto ao enfoque, revela nossa impiedade
(vide o texto “a velha no canto”), o nosso desamor (“você não faz mais parte
dessa família”), a indiferença ou a maldade deliberada (“pureza”), ao lado de
textos de um lirismo comovente, como acontece em “profilaxia de muros” e “duelo”. O autor mira a sua pena precisamente para o
que é o Brasil. Quem somos nós afinal? Onde estão e moram os nossos demônios?
“o medo atocaia meus passos, que esmiuçam a fuga, os postes
na rua balbuciam a claridade impetuosa: inútil clareira a realçar o breu, eles
não aceitam a existência do medo, mas trancam as portas, os dedos sapateiam
ferozmente sobre a tela do celular, propagando mentiras, o temor entra, liga a
tv, senta no sofá e bebe uma cerveja, eles compreendem o preço dos produtos, e
o medo é mercadoria também, não me enganem não me convençam que a desordem
prevalecerá, não me arranquem o medo e o substituam por uma arma, em nome do
direito dos costumes, da fé, imploram a mediação da bala: tenho medo, e ele
pode gestar um impulso em direção ao ataque.” (“ele chegará”, p. 48).
Nada escapa ao crivo do autor. A desorganização social, a
decadência e a desilusão que marcam as relações amorosas, o devir histórico e o
funcionamento do corpo social, falido, as relações de força e violência
destrutiva que organizam o tecido social brasileiro do presente:
“ele imagina: graças a deus, graças a deus, me safei dessa,
estou em casa com a esposa, com a filha, graças a deus estamos abraçados
esperando a novela começar, mas o revólver ainda está apontando para a testa
dele e não descobre o que fazer com o moleque ordenando o dinheiro, o celular,
o relógio, ou hoje é o seu dia de morrer, rápido ou aperto o gatilho.” (“nunca
se sabe como um assalto pode terminar”, p. 63).
Os textos urram as agruras de nossa sociedade na qual
imperam as muitas formas de exclusão e desencontro. As criaturas de Whisner Fraga
são seres humanos comuns, cujos dramas não interessam especialmente a ninguém,
mas que, tomados na perspectiva panorâmica e vertiginosa em que se apresentam,
dizem algo acerca da precarização de nossa experiência contemporânea. Nossos
demônios estão por toda parte a eleger o sofrimento e a miséria física e moral
como um fatalismo cego, um “não há por onde ser diferente”. Perfeita tradução
de uma civilização que lança mão da barbárie para a própria manutenção.
Essas vias de análise do autor nos fazem lembrar muito o
célebre texto de Bertold Brecht (1898-1956): “Há muitas maneiras de
matar uma pessoa. Cravando um punhal, tirando o pão, não tratando sua doença,
condenando à miséria, fazendo trabalhar até arrebentar, impelindo ao suicídio,
enviando para a guerra, etc. Só a primeira é proibida pelo Estado.” As demais,
e há muitas e muitas outras formas, derivam de outros fatores, nomeadamente do
modelo capitalista predador, destruidor e genocida que adotamos:
“o policial ergue os braços para cumprimentar os colegas na
viatura, os mendigos revoam, alarmados (homens em situação de rua, corrigirão
os militantes de coletes laranjas, que aportam depois de removido o corpo):
eles retornam, passos miúdos, ariscos, abaixam os pesares até o contorno do
amigo sob a manta térmica, a assepsia metálica blindando a indigência, ele não
brindará mais a afeição que nunca lhe negou um gole nem o amor picando a veia
num enlace fraternal, enquanto ninguém tem coragem de perguntar quem velará o
companheiro quando o levarem.” (“cuidado com o embrulho na calçada”, p. 24).
Para além da polarização infantil de direitas e esquerdas que
assistimos hoje no país (a essa altura ninguém mais acerta definir o que é isso
ou aquilo), nossos demônios continuam instilando o ódio de classes, o ódio de
gêneros, o ódio de raças e tudo que nos divida cada vez mais. E seguimos
endeusando a Economia, o Mercado, a produção, o lucro. Aqueles que produzem as
riquezas são descartáveis, já que há mão de obra em excesso, sem preparo e
disponível. Essa a lógica (i)lógica do capitalismo. Leia-se especialmente o
conto “você não precisa explicar nada”. Nosso passivo social é imenso, com ou
sem pandemia. Para onde vai um país no qual 1% da população concentra 50% da
riqueza nacional? Como deter a fúria demoníaca dos exploradores de toda sorte?
Como abater a ditadura da mídia, a ditadura do latifúndio, o pensamento único
fascista? Grassa no país a impunidade! Essa mesma que despreza Constituição,
leis, tudo. Nossa verdadeira pandemia não surgiu com a Covid, mas mora
diabolicamente entranhada em nós há séculos.
O que salta à vista nesse mosaico de desatinos apresentado
pelo autor de usufruto de demônios é o homem jogado em um verdadeiro tormento
em vida. É o inalterável cotidiano de um país, onde as roubalheiras, os
desacertos e retrocessos desse nosso eterno desnorteio fazem parecer que o
Brasil é um imenso inferno a céu aberto. O inesgotável repertório de derrotas causou
aos nossos dias a mais completa falência dos valores humanos. Com ou sem
pandemia, o quadro não se altera.
De muitas formas, sutis ou escancaradas, o autor mostra como
atua e como se reproduz em nosso caráter a intolerância, o racismo, a
desonestidade e o terror físico e psicológico – características que oprimem
nosso semelhante, criando, pela desigualdade, diferenças arbitrárias e
justificando-as como naturais:
“conferiram as equações, os dados, os algoritmos e
constataram o fim: sei que você suspeita disso, após tanta carnificina que
presenciamos do sofá, entre um comercial e outro, e é arriscado confiar em
vírgulas, sinais, operadores, ainda mais diante deste vírus ardiloso: um erro
seria trágico, viria a temível sétima onda, helena: vamos sair, ainda com
máscara, claro: eles garantem, a vacina é eficaz: sei, você vai argumentar que
nem quando precisou desesperadamente de tratamentos, de médicos, de hospitais,
deixou o apartamento, mas a situação é outra, agora estamos autorizados, há um
decreto, há uma urgência, eu sei, você não pode, mas tinha de lhe perguntar,
sempre foi assim, decidimos tudo juntos: me desculpe, mas eu vou aproveitar
esse dia que sangra o medo: torça por mim.” (calafrio binário, p.41).
A leitura de um livro incisivo assim pode transmitir
ao leitor a impressão de estar diante de um escritor que do fundo de seu
desencanto e, ante o rigor que usa na caracterização das monstruosidades
humanas, abriga um cético completamente descrente da redenção. Um sujeito que se
desiludiu profundamente com a humanidade. Não creio. Por duas razões: a
primeira de lógica elementar. Se assim o fosse, não teria escrito doze (12)
livros até aqui. E a segunda, que vem se tornando espécie de marca registrada
sua: o leitor mais atento há de notar que em vários de seus contos aparece uma
certa personagem, Helena. Ela quase não fala, pouco dialoga, mas está sempre
ali, ouvindo atenta o narrador. Cumpre lembrar que o autor tem uma filha que se
chama Helena. E fica-nos, ante tal revelação, uma certeza. Quanta e imensa
esperança mora num autor que urde suas ficções e escapa de volta para a
realidade da própria vida a estimular, persuadir e atiçar a própria filha. Incansável,
ele alerta e orienta sua descendência direta quanto aos abismos que cercam a
existência, mostra como contorná-los. Não há, verdadeiramente, maior sinal de
esperança na posteridade do que este, dentro e fora da Literatura.
Krishnamurti
Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor,
pesquisador e crítico literário, é autor, entre outros, de O Crime dei
Caminho Novo (romance histórico), Embriagado Intelecto e outros contos,
À flor da pele (contos)
e Destinos que se cruzam (romance). Possui textos publicados em revistas
no Brasil, Portugal, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e
Espanha. O Touro do rebanho (Editora Chiado, romance histórico) obteve o
primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE/RJ) em 2014. Atuando com a
crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira
contemporânea, colaborando em diversos jornais, revistas e sites literários.